sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ser tecto, parede, chão

Nunca tinha reparado, julgava, na união entre a parede o tecto. A partir de que ponto exacto passava a parede a ser tecto. Devia ser uma guerra disputada ao milímetro, entre cada partícula de cimento e tijolo, ambas querendo estar no cimo de uma divisão. Ser tecto é estar no topo. Ser parede é ter uma existência confinada à eternidade da constante ascensão. Ascender ser numa atingir. Ser tecto é ser observador, porque vê tudo de cima. Ser tecto é ser detective – vê as pessoas mas as pessoas não o vêem. As pessoas não o vêem porque dá muito trabalho olhar para cima, e fazer um ângulo recto com o pescoço. E porque, em geral, os tectos são todos iguais uns aos outros. Não têm decoração, ao contrário das paredes, o que os torna desinteressantes. Exceptuando os das igrejas, catedrais, museus, edifícios especiais, que fogem à regra, e para onde todos olham. Nesses locais, aponta-se para cima, e diz-se “Olha o tecto!”, e por um momento as pessoas olham, e o tecto é olhado. Não acham estranho olhar, mas se estivessem numa casa normal achariam. E… até que ponto um tecto branco não é mais bonito que um pintado? Nas artes modernas que começam a entrar em força nos museus existem quadros só brancos. Pendurados em paredes. Se calhar coisas em paredes são mais admiradas que coisas em tectos. É preciso pensar seriamente nesta diferença entre ser tecto e ser parede. E ser chão. Os tês estados da existência são ser tecto, parede, ou chão. É preciso saber-se ser tecto, parede, e chão.

excerto meu do capítulo XVIII da «Paris»

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